A ciência dos alimentos pode acabar com a insegurança nutricional?
No início da pandemia de coronavírus, interrupções nos sistemas alimentares revelaram vulnerabilidades gritantes nas cadeias de suprimentos e na produção de alimentos. Para os consumidores, os primeiros dias de compras motivadas pelo pânico e as prateleiras vazias nos mercados foram chocantes, apesar de terem sido um problema de curto prazo.
Embora os estabelecimentos estejam relativamente bem abastecidos agora, uma simples ida ao supermercado pode ser estressante e desagradável, mesmo com medidas de proteção como o uso de máscaras, álcool gel e distanciamento social. Muitas pessoas estão analisando diferentes opções para levar alimentos para casa, como feiras de produtores locais, serviços de entrega em domicílio ou cultivo próprio. Com essas mudanças, as startups de ciência e tecnologia de alimentos têm condições especiais de ajudar.
“As comunidades desejam ser mais autossuficientes, resilientes e não depender de cargas de comida vindas de caminhão ou avião”, diz Kevin Jakiela, cofundador da Just Vertical, uma startup de agricultura hidropônica ex-residente do Centro de Tecnologia da Autodesk em Toronto. “Veremos uma tendência crescente do cultivo em ambientes fechados, com a covid-19 acentuando esse interesse.
Enquanto as indústrias fechavam devido ao coronavírus durante o segundo trimestre de 2020, a Just Vertical observou um aumento de três dígitos nas vendas de seu sistema de cultivo hidropônico para ambientes fechados, o AEVA. A torre de 95 cm de largura – projetada e fabricada usando o Autodesk Fusion 360, o SketchBook e projeto generativo durante sua residência em 2019 – permite cultivar de maneira contínua até 4,5 kg de produtos ricos em nutrientes por mês. Fora de casa, os sistemas de recipientes transferíveis da empresa se integram a armazéns e estufas, permitindo o cultivo de alimentos em maior escala usando hidroponia.
O lançamento da Just Vertical foi uma forma de Kevin Jakiela ajudar as comunidades afetadas pela insegurança alimentar, algo que ele vivenciou enquanto trabalhava como professor de alunos indígenas em Nunavut, uma região remota no Ártico canadense com uma taxa de insegurança alimentar documentada de 70%. Um recente relatório da ONU prevê que o coronavírus levará centenas de milhões de pessoas já vulneráveis a enfrentar uma fome de “proporções bíblicas”.
Nos Estados Unidos e no Canadá, houve uma rápida reorganização da cadeia de suprimentos, que passou por uma reviravolta com o fechamento de restaurantes e a mudança de hábitos dos consumidores. O resultado disso foi um aumento súbito de preços e maior desperdício de alimentos. Uma pesquisa do Agri-Food Analytics Lab feita em maio de 2020 revelou que 50 milhões de litros de leite foram jogados fora, ao passo que centenas de milhares de porcos e galinhas foram sacrificados e descartados em vez de serem processados para venda em supermercados.
“As pessoas se tornaram mais conscientes sobre a segurança alimentar, a segurança da cadeia de suprimentos e alimentos limpos”, informa Hooman Koliji, fundador e CEO da CREO Design, empresa de tecnologia ecológica com sede na Califórnia. “Responsabilizar-se pelo cultivo dos nossos próprios alimentos é a reação mais natural a todas essas preocupações.”
A CREO, residente do Centro de Tecnologia da Autodesk em São Francisco, cria soluções que utilizam o cultivo alternativo para sustentar a vida vegetal com o mínimo de intervenção. Desde que aderiu ao programa de residência em 2018, a equipe tem trabalhado no desenvolvimento de sistemas ecológicos inteligentes, modulares e autônomos para residências e edifícios. A plataforma completa de hardware/software BioBulb, da CREO, permite que as plantas cresçam em novas situações e ambientes com recursos escassos usando sensoriamento direto, infusão e inteligência artificial (IA) para aprender as condições ideais de crescimento de uma planta em seu ambiente. Sensores monitoram os sinais vitais da planta, e a unidade faz a infusão direta de nutrientes e água quando necessário.
“A CREO possibilita que a natureza cresça em qualquer lugar”, afirma Hooman Koliji. “Imagine edifícios que tenham uma infraestrutura ecológica integrada como um sistema.”
“Na Califórnia”, acrescenta Hooman Koliji, “vimos agricultores com plantações maduras nos campos que precisaram ser recicladas. Não temos um sistema alimentar localizado e distribuído e ainda dependemos de zonas agrícolas centrais para o fornecimento de alimentos”.
A Growratio, outra ex-residente do centro de tecnologia de Toronto, cria soluções para agricultura em ambiente controlado (CEA), como um sistema de iluminação, redes de sensores/controle pela Internet das Coisas (IoT, Internet of Things) e um sistema de orquestração em nuvem que otimiza automaticamente os ambientes de cultivo. “Estamos vivenciando uma mudança de paradigma na agricultura em ambiente controlado”, diz Paolo Pincente, fundador e CEO da Growratio. Como parte da residência em 2019, Paolo Pincente e sua equipe usaram o projeto generativo para investigar sistemas de iluminação e cultivo de hortaliças. “O destino está traçado: as alterações climáticas, a superpopulação e uma série de outros fatores ameaçam o fornecimento de alimentos, e a atual crise da covid-19 mostra como nossas redes de abastecimento são frágeis”, afirma Paolo Pincente.
A covid-19 também causou um grande contratempo nas linhas de produção, e Evan Fraser, diretor do Arrell Food Institute, afirma que há uma oportunidade real de trazer os sistemas alimentares ao século XXI. “Uma das grandes ironias reveladas pela covid-19 é que algumas das pessoas de quem mais dependemos para manter os sistemas funcionando – repositores de supermercados, açougueiros e motoristas de caminhão – são as mais vulneráveis aos efeitos do coronavírus”, diz ele.
No mundo todo, fazendas e unidades de processamento de carnes se tornaram focos de infecção por covid-19, muitas vezes devido às condições de trabalho em espaços restritos, transportes superlotados para os locais de trabalho e trabalhadores que residem em alojamentos comunitários. Em maio de 2020, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças relataram quase 5.000 casos de covid-19 entre 130 mil funcionários de abatedouros em 19 estados norte-americanos, o que resultou em 20 mortes.
“Haverá um forte apelo por tecnologias como agricultura celular, agricultura em ambiente controlado e fazendas verticais”, afirma Evan Fraser. No entanto, ele diz que para implementar essas tecnologias com sucesso, os responsáveis pela elaboração de políticas e as empresas precisam pensar em parcerias público-privadas criativas. Precisam desenvolver estratégias de inovação para aplicar essas tecnologias, além de fazer isso de um modo que proporcione um sustento digno aos agricultores e às comunidades rurais.
“Essas tecnologias são realmente capazes de ajudar essas comunidades no futuro, quando a adoção em massa a preços muito baixos estiver disponível a todos, em especial quando houver futuras crises sanitárias e climáticas”, diz Hooman Koliji. “Estamos estudando como reduzir nossos custos iniciais nos primeiros quatro anos a ponto de viabilizar a adoção em grande escala por pessoas de renda média-baixa.”
Kevin Jakiela também reconhece os desafios de levar essas tecnologias às pessoas mais afetadas pela insegurança alimentar. Quando o coronavírus interrompeu a produção de seu sistema de cultivo hidropônico, a Just Vertical se voltou para um projeto mais popular, desenvolvendo um programa de jardinagem em casa. A empresa distribuiu gratuitamente pelo correio centenas de pacotes de sementes para comunidades, além de dicas de como fazer um jardim em casa. “Há um grande interesse em jardinagem, não só por quem mora em condomínios urbanos”, diz Kevin Jakiela. “Pode ser alguém em um lar de idosos, um professor na escola – nosso mercado-alvo se expandiu muito. Estamos usando essas informações para otimizar nosso produto para que qualquer pessoa consiga usá-lo.”
A Just Vertical visa trabalhar com vários líderes comunitários, empresas privadas e instituições de caridade que possam atender às necessidades específicas de produtos frescos e/ou criação de empregos em cada comunidade. “Uma abordagem gradual e interorganizacional causaria um impacto mais direto, em vez de simplesmente colocar nossos jardins já existentes na casa de alguém”, diz Kevin Jakiela. “O objetivo geral é solucionar a insegurança alimentar como um todo e complementar a solução global de fornecer alimentos com ponto de preço, abundância e qualidade adequados.”
“Está surgindo um renascimento agrícola baseado na aplicação de tecnologias digitais”, afirma Evan Fraser. “O resultado final será um sistema alimentar mais nutritivo, com uma pegada ambiental menor e provavelmente mais resiliente do que o sistema atual.”